Tanto
refletimos sobre a Vigília Pascal que esquecemos o clima de tristeza e luto que
perpassa o dia do Sábado Santo. Na Liturgia das Horas do Sábado Santo, a Igreja
proclama a tristeza da morte de seu Senhor e Mestre, Jesus Cristo. O clima
espiritual das liturgias, especialmente aquelas matutinas, cantam lamentações,
súplicas de perdão e intercessões de misericórdia. São prenúncios preparativos
para exultar com maior força a alegria da Ressurreição. Este clima espiritual
da Igreja é iniciado após a Liturgia da Morte do Senhor, na Sexta-feira Santa,
quando a Igreja ingressa no grande silêncio. Este grande silêncio do Sábado
Santo, pela manhã, é tradicionalmente dedicado à Mãe de Jesus, exemplo de fé e
esperança, motivando os cristãos a respirar a vida com os mesmos odores da fé e
da esperança, porque Deus cumpre suas promessas e suas promessas estão sempre
do lado da vida. O Sábado Santo está envolvido nessa atmosfera de fé e
esperança que mistura a tristeza da Cruz e a esperança da Ressurreição. Por isso,
o Sábado Santo não se resume na Vigília. Esta é ponto de chegada, o grande
auge, a grande exultação que explode de alegria, que celebra a vitória da vida
sobre a morte. A grande Vigília Pascal é preparada por um dia silencioso e
carregado de profunda espiritualidade — com um quê de espiritualidade “mariana”
— contemplando a Mãe silenciosa que sofre sem deixar de crer e esperar em Deus.
Manifestando a continuidade desse dia
silencioso e enlutado, a primeira parte da Vigília Pascal acontece na escuridão
silenciosa da noite. Como tudo é simbólico nessa celebração, acendemos o fogo
da vida na escuridão da morte. No meio da noite, em uma Igreja escurecida
(enlutada) pela morte do Senhor, acendemos uma grande luz para proclamar a
vitória de Jesus Cristo recordando as maravilhas divinas, através da longa
Liturgia da Palavra que, pouco a pouco, vai acendendo as luzes da igreja e no
coração dos celebrantes, fazendo memória da criação divina (1ª leitura), da fé
de Abraão (2ª leitura), da liderança profética de Moisés, conduzindo o povo
pela Páscoa do deserto (3ª leitura). Depois, a Igreja proclama agradecida, em
forma de poemas e cânticos, as promessas divinas (4ª leitura, 5ª leitura, 6ª
leitura e 7ª leitura; mais os salmos responsoriais). Finalmente, a luz
resplandece com todo o esplendor no túmulo vazio: o Senhor ressuscitou,
proclama o Evangelho; “aleluia”, cantam os celebrantes. Nesta longa Liturgia da
Palavra, passado e presente se encontram, vida e morte duelam; a vida vence:
Jesus ressuscitou (Evangelho). O que isso significa?
Professamos nossa fé declarando que
Jesus “desceu à mansão dos mortos”. Passa
pelo mistério da morte, participa da morte como um dia dela participaremos. O Sábado
Santo é um dia no qual experimentamos um mundo sem Deus (Deus sepultus est). Por isso, o Sábado Santo começa como dia do
sepultamento, até o momento que a sepultura é aberta e deixa de ser lugar dos
mortos. Sábado Santo é também o dia, no qual os homens pretenderam enterrar
Deus, iludidos que uma pedra seria suficiente para fazê-lo desaparecer da terra.
Por isso, na celebração da Vigília Pascal, os celebrantes se colocam do lado de
Deus e exultam de alegria porque a vitória da morte foi aparente e por pouco
tempo. Depois que Jesus “desceu à mansão
dos mortos”, a morte não é mais a mesma. Jesus tirou dela o aguilhão; tirou-lhe
a possibilidade de destruir a vida, e a transformou em passagem — em Páscoa —
para a vida eterna.
Algum tempo atrás li um texto que,
penso, poderá ajudar a reflexão espiritual do Sábado Santo. Era um texto em
francês; não o lembro na íntegra, por isso faço uma adaptação do mesmo, em base
as minhas lembranças. O texto dizia que a Mãe de Jesus recebe o manuscrito do
evangelista Lucas (seu Evangelho) e, depois de lê-lo, escreve algumas
considerações e lembranças do primeiro Sábado Santo da história, que ela passou
na casa de João. Passo a algumas partes do texto...
Li o teu livro, Lucas, e mesmo que
tenhas pedido para corrigir ou ampliar a sessão, na qual meu Filho começou a
ensinar e pregar na Galiléia, não mudaria nenhuma linha. Durante a leitura a
saudade começou a falar alto e não deixo de repensar tudo que ele disse, permitindo
assim que ele continue falando no meu coração.
Até mesmo as lembranças que te contei
aparecem com nova vivacidade. Contei que quando o encontramos no Templo, por
exemplo, eu e José não tínhamos compreendido bem a explicação que nos dera, que
deveria cuidar das coisas do seu Pai. Agora vejo que tudo que dissera tem um
sentido profundo, que nos escapa num primeiro momento, mas é melhor
compreendido no silêncio da meditação, embora tudo será esclarecido no último
dia (....). Foi entre essas lembranças que considero importante dizer algo mais
sobre aquele Sábado, quando meu Filho foi colocado na sepultura. Tu dizes
simplesmente que entramos e ali o sepultamos como prescrito pela Lei e pelos
costumes dos judeus. Naquele dia, o Espírito repousou em mim com todo seu dom
de fé e esperança, como só a ele é possível. (Em Pentecostes, isso se tornou
visível nas línguas de fogo).
Depois de ter enterrado o corpo de
Jesus, João insistiu que não voltasse para minha casa, mas que ficasse com ele,
durante o Sábado. Naquele dia não conversamos quase nada, porque a voz e as
palavras nos faltavam. E, mesmo que a dor e o luto transpassassem meu coração,
quando chegou a noite, comecei a sentir uma fé e uma certeza inexprimíveis, que
jamais tinha sentido em minha vida. (....). Veio-me à mente as palavras que ele
dissera a Marta e Maria: “Eu sou a ressurreição e a vida”. Esta foi a Palavra
que iluminou meu coração quando a tarde daquele Sábado ia caindo. Comecei a me
perguntar exatamente como tinha questionado Gabriel: “como será isso possível?”
A resposta foi a mesma: “A Deus nada é impossível!” No 1º dia da semana,
continuei meditando silenciosamente estas palavras em meu coração, entre trevas
de dor e dores de saudade. Mas elas estavam plenas de certeza, repletas de fé,
a ponto que meu coração se aquietou e senti vontade de novamente cantar a Deus,
meu salvador.
Mas, eu ainda nada sabia do que
aconteceria naquela manhã. Quando minhas amigas foram ao túmulo com perfumes,
eu sentia em meu coração que elas não o encontrariam mais no túmulo. No meio de
toda a confusão daquele dia, eu continuei meditando no silêncio de meu coração,
ouvindo aqui e ali alguém comentando sobre ressurreição, sem ousar crer que
pudesse ser verdade. Foi o próprio João que veio até meu quarto para dar a boa
notícia, para comunicar a grande realização de Deus: ele ressuscitou dentre os
mortos. Meu Filho ressuscitara. Grande é nosso Deus!
(Adaptação de
Serginho Valle)
Leituras deste sábado santo :
1ª leitura: Gn 1,1—2,2 = Depois da criação, Deus viu que tudo era bom
Salmo: Sl 103 - Enviai, Senhor o vosso Espírito, e renovai a face da terra
2ª leitura: Gn 22,1-18 = O sacrifício de Abraão: “não faças nada a teu filho”
Salmo: Sl 15 = Guardai-me, ó Deus, porque em vós meu refugio
3ª leitura: Os Ex 14,15—15,1 = Atravessaram o Mar Vermelho a pé enxuto
Salmo: Ct de Ex 15 = Cantemos ao Senhor, que fez brilhar a sua glória
4ª leitura: Is 54,5-14 = Com misericórdia me compadeci de ti
Salmo: Sl 29 = Eu vos exalto, ó Senhor, porque vós me livrastes!
5ª leitura: Is 55,1-11 = Vinde a mim, farei convosco um pacto eterno
Salmo: Ct de Is 12 = Com alegria bebereis do manancial da salvação
6ª leitura: Br 3,9-15.32— 4,4 = Marcha para o esplendor do Senhor
Salmo: Sl 18b = Senhor, tens palavras de vida eterna
7ª leitura: Ez 36,16-17a. 18-28 = Derramarei sobre vós uma água pura
Salmo: Sl 41 = A minh'alma tem sede de Deus
Epístola: Rm 6,3-11 = Cristo ressuscitado dos mortos, não morre mais
Salmo: Sl 117 = Aleluia, daí graças ao Senhor, porque Ele é bom
Evangelho: Lc 24,1-12 = Ele ressuscitou e vai à vossa frente para a Galiléia
Ressurreição de Jesus Cristo
Pedro dirige sua palavra a judeus que conheciam Jesus e os fatos históricos da Paixão e Ressurreição: “vós sabeis o que aconteceu em toda a Judéia, a começar da Galiléia” (1ª leitura). O acontecimento histórico da Ressurreição ilumina a reflexão dos Evangelhos e de Pedro, que define Jesus como aquele que “andou por toda a parte, fazendo o bem e curando a todos que estavam dominados pelo demônio; porque Deus estava com ele”(1ª leitura). É a partir da Ressurreição que Pedro, os Apóstolos e todos os discípulos compreendem que a missão de Jesus se destinava a perdoar os pecados da humanidade para torná-la digna de participar da vida divina. Na sua pregação, Pedro não se detém em detalhes da história de Jesus, pois eram conhecidos. Sua pregação esclarece o significado da vida de Jesus através de uma leitura teológica de que “todos os profetas dão testemunho dele” (1ª leitura). Contemplando tais fatos, a Liturgia canta o Sl 117 para exaltar a misericórdia divina, glorificar e louvar a Deus pelas “maravilhas que ele fez a nossos olhos” (salmo responsorial). Olhos da carne, no caso de Pedro e dos Apóstolos, que comeram e beberam com o Senhor (1ª leitura), olhos da fé para quem acredita no testemunho daqueles que “comeram e beberam” com o Senhor (1ª leitura). Pois bem, este Jesus foi morto, ressuscitou e tornou-se pedra angular, a possibilidade do homem, da mulher e da sociedade humana construírem uma nova vida, com um sentido existencial novo (salmo responsorial).
Construir nova vida sobre essa pedra angular exige descartar fundamentos existenciais oferecidos pelo mundo para edificar a vida sobre Jesus e seu Evangelho. As orientações práticas para tal fim estão nas duas cartas de Paulo (propostas à escolha nessa celebração). Uma convida a iluminar a vida com o esplendor da Ressurreição de Jesus, presente em nós desde o Batismo (2ª leitura - CL). Quem é batizado na Ressurreição traz em si o esplendor da luz divina, embora escondida nos limites humanos do corpo; um dia, ela aparecerá plenamente, quando será “revestido de glória” (2ª leitura - Cl). Noutra, Paulo orienta a trocar o fermento velho do mundo pelo fermento da Ressurreição, que leveda a vida no amor divino (2ªleitura - 1Cor). Na prática, não se trata de fugir do mundo, mas nele viver iluminado pelo esplendor da Ressurreição e deixando-se levedar pelo amor divino.
Toda essa teologia e espiritualidade não passará de bela teoria a quem não fizer o caminho da Ressurreição, como as mulheres, na madrugada do mundo (Evangelho), e os discípulos de Emaús, no entardecer de um sonho que terminara em morte (Evangelho da noite). Percorrer esse caminho exige o tempo e o esforço “para alcançar as coisas do alto” (2ª leitura - Cl). A primeira experiência do discípulo e discípula, na busca da Ressurreição acontece na madrugada, com as dúvidas da fé diante de uma sepultura com uma grande pedra irremovível. “Quem irá remover a pedra da sepultura?”,perguntam as mulheres (Evangelho). Quem irá tirar de nós as pedras que encontramos nos caminhos da vida para contemplar o esplendor da Ressurreição de Jesus? O encontro com o túmulo vazio também é questionador: — quem poderia ter tirado a pedra? Quem se interessaria em roubar o corpo, dobrando os panos fúnebres? Questionador porque instiga, provoca a crer na Ressurreição lendo detalhes nos sinais. Quem aprender a gramática dos sinais divinos, que se ilumina na fé, perceberá que a morte tinha sido dobrada nos panos e colocada de lado, pois a vida voltou a resplandecer em Jesus: ele ressuscitou dos mortos (Evangelho). Aleluia!
“Onde puseram o corpo de Jesus”
“Onde puseram o corpo de Jesus”, perguntam as mulheres ao se depararem com o túmulo vazio, na madrugada da Ressurreição. O corpo de Jesus, realidade de sua presença entre nós, havia desaparecido. No Natal, encontramos Jesus no seu corpo humano (Lc 2,7). Isto não acontece na Páscoa, quando sua presença se dá de outros modos: caminha conosco sem ser conhecido, fala em sua Palavra e parte o pão na mesma Mesa onde alimentamos nossas vidas (Lc 24,13-32). No Natal, encontramos no corpo de Jesus a visibilidade do Emanuel, Deus conosco e Deus entre nós; na Páscoa essa certeza desaparece de nossos olhos. “Onde puseram o corpo do Senhor”, para que o encontremos? As mulheres se depararam com o Senhor e o confundiram com um jardineiro (Jo 20,15). Os discípulos de Emaús caminharam 13Km com Jesus, mas só o reconheceram na experiência do coração ardendo ao ouvir sua Palavra, não seu timbre de voz (Lc 24,32). Seja para as mulheres como para os discípulos, os olhos estavam fechados pelo medo, ansiedade, decepção, dor, susto, choros, deplorações... sentimentos que impedem ver e sentir a presença divina nos acontecimentos da vida. Não é falta de fé, apenas a necessidade do tempo necessário para que a fé amadureça.
Nesse “Ano da Fé”, é importante celebrar a Ressurreição de Jesus não apenas como uma convicção mental, de quem crê porque outros disseram que isso aconteceu, mas se colocando a caminho para contemplar as maravilhas que o Senhor realiza em nossas vidas (SR). Todas as nossas celebrações são memoriais: proclamam os feitos do Senhor, dão graças, e se projetam para o futuro que é eterno. Por isso, a celebração é fonte da fé, que confirma e indica o caminho capaz de dilatar o tempo e o espaço da vida. Celebrar a Ressurreição não se limita ao fato histórico em si, mas é momento para repetidamente perceber a presença do Senhor nos caminhos de nossas vidas, sejam eles no escuro da madrugada ou no lusco-fusco da tarde.
Sempre é preciso fazer e refazer o caminho, como dito acima. Por isso, a celebração é uma pausa restauradora, como proclama um “orate fratres”, no rito das oferendas. Fazer e refazer o caminho recordando (trazendo para o coração, para o centro da vida) aquilo que o Senhor fez e continua fazendo em nossas vidas. “Quantas maravilhas ele faz a nossos olhos”, em nossas vidas, canta o salmista. Não se trata de envolver a fé num sentimento bom, embora isso se torne conseqüência, mas torná-la palpável e concreta, na pedagogia de quem caminha nas estradas do mundo ao lado de Jesus ressuscitado. Para isso é importante caminhar mais atento que os discípulos de Emaús e perceber, na fé, a presença do Senhor ressuscitado ao nosso lado. Feliz Páscoa!
(Francisco Régis)
Retirado do site http://www.liturgia.pro.br/site/
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