"Foram
os hebreus que deram os primeiros passos para a descoberta do espaço interior
onde vejo a distância entre mim e a verdade sobre mim mesmo, em vez de me
preocupar com a verdade política, sofro com a mentira moral", escreve Luiz Felipe Pondé, professor de Filosofia, em artigo
publicado no jornal Folha de S. Paulo,
15-07-2013.
Segundo ele, "a filosofia hebraica funda regimes de verdade que
leva o sujeito a olhar para si mesmo em vez de olhar para os outros. Em vez de
cultivar uma filosofia política, ela cultiva uma filosofia moral da vida
interior na qual não é barulho da assembleia que importa, mas o silêncio no
qual os demônios desvelam nossa própria face".
Eis
o artigo.
Então,
Jesus foi abordado por um grupo de pessoas muito preocupadas com a retidão da
lei. Traziam consigo uma mulher em prantos que havia sido pega em adultério.
Jogada ao chão, ela tremia de medo. O povo pedia para que Jesus fizesse valer a
lei: morte da adúltera por apedrejamento. (João, 8, 1-11. Nota da IHU On-Line).
Isso foi há 2.000 anos, mas ainda hoje, no mesmo Oriente Médio, tem
gente que apedreja mulheres e acha (agora, no Egito) que violentá-las nas
praças seja um "direito da soberania popular revolucionária",
enquanto se matam, nas mesmas praças, pelo modo ocidental de vida ou por outra
forma de lei (o fundamentalismo islamita).
E assim caminha a humanidade, em ciclos, para lugar nenhum, mas com
festas e crenças diferentes no meio, e demagogos a cantar...
Mas voltemos a Jesus. Fatos como esses me fazem achar que Jesus era um
cabra macho. Enfrentar o povo quando este se julga movido pelo correto modo de
viver é algo que exige, como dizem los hermanos, "cojones". Jesus
disse que quem tivesse livre de pecado que atirasse a primeira pedra. Todos
foram embora.
Esta é uma das passagens típicas do mundo bíblico na qual fica claro o
tema da hipocrisia como motivação profunda daqueles que se acham arautos do
bem, moral ou político.
Mas Jesus era um filósofo hebreu e estes filósofos eram diferentes dos
filósofos gregos. O mundo bíblico é diferente da filosofia grega. Naquele, o
"regime da verdade" (ou modo de busca da verdade) é interno e moral,
na filosofia grega é externo e político.
O problema
de saber se o que eu digo é verdade ou não, quando falo ou argumento, inexiste
na Bíblia, porque o personagem principal do diálogo é Deus, e Ele sempre sabe
de tudo, não há como mentir para Ele como há como mentir para outro homem ou
para assembleia "soberana", como na filosofia ou democracia gregas.
Segundo o críticoGeorge Steiner, o Deus de Israel
irrita porque está em toda parte e sabe de tudo.
Sabe-se que o advento da democracia grega levou muita gente a pensar
sobre a diferença entre pura retórica, que visa o mero convencimento dos outros
numa assembleia (eu acho que a democracia é 90% isso mesmo), e a verdade em si
do que se fala.
O problema que nasce daí é a relatividade da verdade, dependendo do
ponto de vista de quem fala e de quem ouve. Na Bíblia, o problema é se minto
para mim mesmo ou não. Na esfera pública, é o tema da hipocrisia, na privada, o
da verdade interior. A Bíblia criou o sujeito e as bases da psicologia
profunda.
Na Bíblia, como o poder é sempre de Deus e ele é mais íntimo de mim do
que sou de mim mesmo, o problema é como eu enfrento a mim mesmo. A preocupação
com a lei é sempre acompanhada da atenção para com a falsidade de quem diz ser
justo.
Por isso foram os hebreus que deram os primeiros passos para a descoberta
do espaço interior onde vejo a distância entre mim e a verdade sobre mim mesmo,
em vez de me preocupar com a verdade política, sofro com a mentira moral.
O crítico Erich Auerbach, no seu "A
Cicatriz de Ulisses", parte da coletânea "Mímesis",
reconhece este traço do texto hebraico: a relação de atenção e agonia entre
Deus e seus eleitos molda o herói bíblico, dando a ele um rosto marcado por uma
tensão moral.
Ainda na
Bíblia hebraica, o rei David, o preferido
de Deus, em seus belos "Salmos", O encanta justamente porque expõe
seu coração sem qualquer tentativa de mentir para si mesmo.
Santo
Agostinho com suas "Confissões" faz eco a David. A literatura monástica e mística medievais
cultivou este espaço até seu ressurgimento no século XIX no pietismo alemão de
gente como J.G. Hamann, o "mago do norte",
ancestral direto do romantismo. Do romantismo e seu epicentro na verdade
interior do sujeito, chegamos à psicologia profunda e à psicanálise.
A filosofia hebraica funda regimes de verdade que leva o sujeito a olhar
para si mesmo em vez de olhar para os outros. Em lugar de cultivar uma
filosofia política, ela cultiva uma filosofia moral da vida interior na qual
não é barulho da assembleia que importa, mas o silêncio no qual os demônios
desvelam nossa própria face.
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